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O Sistema de Destinação de Resultados da Lei das Sociedades por Ações

A Lei das Sociedades por Ações (Lei n.º 6.404, de 15 de dezembro de 1976) introduziu, em seu Capítulo XVI, (principalmente nos arts. 189 a 202) um sofisticado sistema de destinação de resultados, conciliando os interesses potencialmente conflitantes entre a companhia, o acionista controlador, o acionista minoritário e outros terceiros (ex. credores).

 

Ademais, o sistema de destinação de resultados da Lei das Sociedades por Ações visa, dentre outros objetivos, trazer previsibilidade à destinação dos resultados, assegurar a remuneração periódica do investimento do acionista e evitar a retenção indevida de lucros – respeitando a finalidade preponderante da sociedade empresária, de auferir lucros.

 

Referidas finalidades ficam evidentes na medida em que a lei possibilita aos acionistas deliberarem pela retenção ou destinação de lucros para reservas, desde que respeitados os eventos de distribuição obrigatória dos lucros (ex. dividendos prioritários, dividendos obrigatórios e o saldo de dividendos não destinado ou retido) e observados os contrapesos impostos pela lei.

 

De forma bastante sucinta, descrevemos abaixo o caminho da destinação do resultado previsto no Capítulo XVI da Lei das Sociedades por Ações, ilustrando o esforço do diploma legal em atingir os objetivos pretendidos.

 

Resultado (Lucros Acumulados)

 

Segundo Alfredo Lamy Filho e José Luiz Bulhões Pedreira[1], o resultado da companhia é a consequência financeira da atividade empresarial – resultando em lucros ou prejuízos – e a Lei das Sociedades por Ações estabelece em seu art. 187 a forma de apuração do mesmo.

 

O resultado da companhia, apurado na forma do art. 187, deverá observar o sistema de destinação de resultados da Lei das Sociedades por Ações.  De acordo com o art. 189, do resultado serão deduzidos os prejuízos acumulados e os impostos (a provisão para o Imposto sobre a Renda e a Contribuição Social sobre Lucro Líquido).  Se o resultado resultar em prejuízo do exercício, referido prejuízo será obrigatoriamente absorvido pelos lucros acumulados, pelas reservas de lucros e pela reserva legal existentes, nessa ordem.

 

Notem que o art. 56 da Lei das Sociedades por Ações estabelece uma despesa adicional que incide sobre o resultado antes das deduções do art. 189, na forma da parcela dos lucros atribuída às debêntures com participação nos lucros[2].

 

O art. 190 introduz outras três deduções estatutárias (devem estar autorizadas pelo estatuto social da companhia) que incidem sobre o resultado após as deduções do art. 189: (i) participações a administradores e empregados, previstas no art. 152, parágrafo 1º (as chamadas “gratificações de balanço”), para as companhias cujo estatuto fixar dividendo obrigatório em 25% ou mais do lucro líquido, desde que as participações não ultrapassem a remuneração anual dos administradores nem 10%  dos lucros, o que for menor; e (ii) partes beneficiárias previstas no art. 46, que constituem efetivo direito de crédito contra a companhia fechada (limitado a 10% dos lucros).

 

Lucro Líquido

 

A administração da companhia elaborará proposta de destinação do lucro restante após as deduções dos artigos anteriores da lei, sempre respeitando o disposto nos artigos 193 a 203 da Lei das Sociedades por Ações.  A efetiva aprovação da destinação é competência dos acionistas, mas cabe à administração propor a forma da destinação dos lucros.

 

É a partir do lucro líquido que os acionistas podem decidir aprovar retenções e/ou alocações para reservas de lucros.  As reservas possuem espécies, funções, destinações e/ou limites atribuídos em lei, de forma a restringir a discricionariedade da administração e do acionista controlador no momento da destinação dos lucros – e proteger o direito do minoritário de receber sua parcela dos lucros.

 

A primeira destinação obrigatória do lucro líquido é a parcela de 5% que deverá ser destinada à reserva de lucros legal (art. 193), que tem como limite 20% do capital social.  Referida retenção não será obrigatória caso a companhia possua uma reserva de capital em montante que, somado ao montante da reserva legal existente, represente 30% do capital social.

 

Após a destinação à reserva legal, o próximo destino dos lucros líquidos deverá ser, se existirem, para ações preferenciais (art. 17 e art. 203) com prioridade no recebimento de dividendos fixos ou mínimos.  Esta destinação deve ser respeitada antes das reservas estatutárias (art. 194), retenção de lucros (art. 196), reserva de lucros a realizar (art. 197) e do dividendo mínimo obrigatório (art. 202).

 

Na sequência, a administração poderá propor a destinação de parte dos lucros líquidos à reserva para contingências (art. 195) e reserva de incentivos fiscais (art. 195-A), caso aplicável.  A reserva para contingências se justifica quando existirem expectativas (justificadas) de perdas futuras e tem por finalidade segregar uma parcela do lucro líquido no presente, para que, quando verificada ou não referida perda futura, a reserva seja revertida e o acionista receba uma distribuição de lucros. A função é manter certa estabilidade no fluxo de recebimentos, suavizando os efeitos de um resultado financeiro negativo caso a perda se concretize.

 

Já a reserva de incentivos fiscais tem por objetivo evitar que sejam distribuídos aos acionistas, na forma de lucros, montantes auferidos como incentivos e subvenções fiscais.  Não é obrigatória, mas até 31 de dezembro de 2023 havia certa compulsão econômica para a alocação de incentivos nesta reserva, oriundo da tributação prevista na Lei 12.793 de 13 de maio de 2014.  Com a publicação, em 29 de dezembro de 2023, da Lei 14.789 (com vigência a partir de 1º de janeiro de 2024), as subvenções fiscais passaram a ser objeto de tributação, sendo bastante reduzido o incentivo econômico de alocar os montantes de subvenções para a reserva de incentivo fiscal.

 

Lucro Líquido Ajustado

 

Chegamos ao “Lucro Líquido Ajustado”, que prevê o pagamento do dividendo mínimo obrigatório estabelecido no art. 202.  A regra geral da Lei das Sociedades por Ações é que antes das reservas estatutárias (art. 194) e retenção de lucros (art. 196), a companhia obrigatoriamente distribua um montante mínimo dos lucros.

 

Entretanto, o próprio art. 202 apresenta algumas exceções que possibilitam que a companhia não distribua dividendos mínimos obrigatórios.

 

No § 3º consta hipótese de retenção de lucros que não é uma reserva, na figura da possibilidade de retenção do lucro por deliberação unânime dos presentes (i) em companhias fechadas (exceto pelas que sejam controladas de companhias abertas); e (ii) em companhias abertas, exclusivamente para fins de captação de recursos por debêntures não conversíveis em ações.

 

Os § 4º e 5º dispõem sobre a “Reserva Especial”.  Referidos dispositivos conferem aos acionistas a faculdade de destinar para reserva especial uma parcela dos lucros cuja distribuição seja incompatível com a situação financeira da companhia naquele exercício social.  Ao passo que possibilita referida destinação, a Lei das Sociedades por Ações exige que (i) o conselho fiscal (se em funcionamento) apresente parecer sobre referida informação; (ii) em companhias abertas, os administradores enviem à CVM exposição justificativa em até 5 dias da realização da assembleia; e (iii) que a reserva especial (não absorvida por prejuízos acumulados) seja imediatamente paga nos exercícios subsequentes.

 

A reserva especial não tem ampla utilização (particularmente em companhias abertas), uma vez que sua aprovação pressupõe um cenário econômico desafiador para a companhia, o que pode impactar a percepção do mercado com relação à companhia.  Ademais, a CVM prioriza a fiscalização de companhias abertas que não apresentem lucro ou que deixem de pagar o dividendo mínimo obrigatório (Lei 6385/76, art. 8º, inciso V).

 

O art. 197 apresenta a possibilidade de os acionistas destinarem para a “Reserva de Lucros a Realizar” a parcela do lucro líquido não-realizada que deveria ser distribuída como dividendo mínimo obrigatório.  A finalidade é conciliar o regime de competência das sociedades anônimas (art. 177) com a realidade do caixa da companhia, evitando que a companhia distribua lucros sem que tenha recursos efetivos.  Entretanto, o inciso III do art. 202 e o§ 2º do art. 197 determinam que referida reserva pode ser utilizada exclusivamente para o pagamento de dividendos tão logo seja possível distribuir dividendos (first-in first-out).

 

Reservas Estatutárias e Retenção de Lucros

 

Em conjunto, as Reservas Estatutárias (art. 194) e a Retenção de Lucros (art. 196) são as “janelas de discricionaridade” do sistema legal de destinação de resultados, na medida em que conferem aos acionistas certa liberdade para não distribuir parcela dos lucros.

 

Entretanto, as Reservas Estatutárias e a Retenção de Lucros não configuram uma carta-branca para a retenção de lucros. A Lei das Sociedades por Ações apresenta contrapesos a referida liberdade, tanto nas Reservas Estatutárias (art. 194) quanto no caso da Retenção de Lucros (art. 196).

 

As Reservas Estatutárias podem ser acordadas entre os acionistas e incluídas no estatuto social das companhias, de modo a estabelecer um montante dos lucros que deverá ser retido, observados os termos ali previstos.  Entretanto, referida disposição estatutária deve (de modo preciso e completo) indicar a finalidade da reserva, fixar os critérios da parcela do lucro líquido que será destinada para reserva e, finalmente, fixar um limite máximo para a retenção.

 

É entendimento pacífico da doutrina que a Retenção de Lucros prevista no art. 196 não possui natureza de reserva de lucros (tendo inclusive a CVM se manifestado expressamente sobre este tema em voto de diretor no Processo CVM RJ2012/8386).  Trata-se de uma faculdade dos acionistas de, em assembleia geral, aprovar retenção de parcela de lucros com base em um orçamento de capital elaborado pela administração.

 

A atenção que a retenção de lucros do art. 196 atrai se deve justamente ao fato de referida retenção não ter natureza de reserva de lucros e, portanto, não estar sujeita ao limite do capital social previsto no art. 199, nem possuir finalidade específica prevista em lei.  Ademais, a natureza assemblear da retenção de lucros permite aos controladores impor sua vontade sobre a minoria sem o direito de retirada.

 

Os contrapesos da Lei das Sociedades por Ações à liberdade da retenção de lucros do art. 196 são[3]: (i) a obrigatoriedade do orçamento de capital justificado de forma detalhada, com informações completas e precisas e com base nas necessidades efetivas da companhia; (ii) a obrigatoriedade do efetivo cumprimento do orçamento de capital (em caso de inexecução dos investimentos previstos no orçamento de capital, é necessário que os valores sejam revertidos); (iii) a duração máxima de 5 exercícios sociais (exceto em projeto que demande prazos maiores); e (iv) obrigatoriedade de atualização anual do orçamento de capital, caso o orçamento seja por período superior a um ano.

 

Finalmente, o § 6º do art. 202 determina que os lucros que não tiverem sido destinados na forma dos arts. 193 a 197 deverão de integralmente distribuídos aos acionistas na forma de dividendos.

 

A análise acima do sistema de distribuição de resultados da Lei das Sociedades por Ações evidencia os esforços do legislador em conceder maior previsibilidade e conciliar interesses dos acionistas (controlador e minoritário) e da companhia, ao passo que protege o direito do acionista ao retorno de seu investimento.

 

Este artigo foi elaborado por Lucas Manzoli de Almeida, advogado nas áreas de Finanças Estruturadas e Securitização, Fusões e Aquisições, Mercado de Capitais, Private Equity e Venture Capital e Regulatório de Companhias Abertas e Societário.

 

Se você tiver alguma dúvida ou quiser continuar a conversa acerca de qualquer dos aspectos aqui debatidos, entre em contato conosco por meio do e-mail comunicacao@pinheiroguimaraes.com.br.

 

[1] PEDREIRA, José Luiz Bulhões e LAMY FILHO, Alfredo (Coordenadores). Direito das Companhias. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2017, 2ª edição p. 40.
[2] EIZIRIK, Nelson. Lei das S/A Comentada. V.3. São Paulo: Quartier Latin, 2015, 2ª edição. p. 461.
PEDREIRA, José Luiz Bulhões e LAMY FILHO, Alfredo (Coordenadores). Direito das Companhias. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2017, 2ª edição p. 431.
[3] SEI 199657.000743/2016-84 – PAS RJ2016/817 –Carlos Alberto Rebello Sobrinho.
Processo CVM RJ2012/8386 – Gustavo Gonzalez.


   

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